Estamos prontos para (re)escrever a história da exploração lunar?
Em 20 de julho de 1969, Neil Armstrong eternizou o “pequeno passo para um homem”. Mas e se, daqui a dois anos, a frase que ecoar no regolito lunar vier de uma voz feminina? A NASA acaba de reafirmar o cronograma que aponta para meados de 2027 como a data-alvo do pouso da missão Artemis III — o primeiro retorno humano à superfície da Lua desde 1972 e, possivelmente, o momento em que uma mulher cravará suas pegadas no solo do Polo Sul lunar.(space.com)
Só que a jornada até lá é digna de um romance de ficção científica: foguetes gigantes, naves acopladas em órbita, abastecimentos complexos promovidos por mega-lançamentos da Starship e todo um guarda-roupa de trajes espaciais sob medida. Neste artigo, vamos destrinchar cada etapa, entender quem pode ser a pioneira, quais obstáculos técnicos ainda tiram o sono dos engenheiros e por que o futuro da exploração — no melhor estilo Space Today — anda mais empolgante do que nunca.
Por que voltar? A ciência (e a geopolítica) por trás do Polo Sul
Se você pudesse escolher qualquer região da Lua para pousar, por que ir justamente para um canto gelado, remoto e permanentemente sombreado? A resposta está na água. Depósitos de gelo aprisionados em crateras polares podem ser extraídos, quebrados em hidrogênio e oxigênio e transformados em combustível para naves rumo a Marte. Além disso, a topografia extrema oferece terreno virgem para estudos de geologia, astrobiologia e física do interior lunar.
Mas há um ingrediente geopolítico inegável: China e Rússia planejam uma base conjunta nessa mesma latitude; a Índia busca consolidar seu sucesso do Chandrayaan-3; e empresas privadas já pesquisam mineração in-situ. Liderar a primeira instalação tripulada no Polo Sul significa ditar regras de trânsito espacial e criar precedentes de uso de recursos. Em outras palavras, quem chegar primeiro define o jogo.
Artemis: a ponte entre Apollo e o futuro multiplanetário

A série Artemis é dividida em missões progressivas. Artemis I (2022) foi o voo não tripulado que testou foguete SLS e cápsula Orion em trajetória retrógrada distante; Artemis II (abril/2026) colocará quatro astronautas em órbita lunar; e, então, chega Artemis III com o pouso histórico.(space.com, nasa.gov)
O plano é mais ambicioso que a lógica direta de Apollo:
- Lançamento do SLS Block 1 transportando a Orion e seus quatro tripulantes.
- Inserção em órbita de halo quase-retílinea (NRHO), a mesma que servirá de estacionamento para a futura miniestação Gateway.
- Acoplamento com o Starship Human Landing System (HLS) da SpaceX, já pré-posicionado e reabastecido após 14 a 16 lançamentos-tanker em órbita baixa terrestre.(en.wikipedia.org)
- Dois astronautas (um deles, obrigatoriamente, mulher) transferem-se para o HLS, descem ao Polo Sul, passam até 6 dias em atividades extraveiculares, coletam 60 kg de amostras e retornam à Orion para a viagem de volta à Terra.
Se a sequência parece um encadeamento de dominós, é porque é mesmo. Cada passo depende do anterior (e de centenas de contratos com 20 centros da NASA, corporações e agências parceiras).
Quem será “ela”? As candidatas no radar
Desde 2020, a NASA mantém uma lista de 18 astronautas batizada de Artemis Team. Embora o órgão tenha, em março de 2025, removido discretamente a frase “primeira mulher” de alguns de seus textos institucionais, o compromisso político interno — reforçado pelo Congresso — segue explícito: a tripulação deverá conter ao menos uma astronauta feminina e, preferencialmente, um astronauta negro.(phys.org)
Veja Também:
❝A representação importa tanto quanto a tecnologia❞ — Bill Nelson, administrador da NASA.
Entre os nomes mais cotados estão:
Astronauta | Missões prévias | Especialidade | Por que favorita |
---|---|---|---|
Christina Koch | 328 dias na ISS (recorde feminino contínuo) | Eng. elétrica, física de plasma | Já escalada para Artemis II; experiência em longas estadias. |
Jessica Meir | 205 dias na ISS; EVA histórica só de mulheres | Doutora em biologia marinha | Experiência em ciência de campo em ambientes extremos (Antártica). |
Anne McClain | 203 dias na ISS, piloto de combate | Eng. aeroespacial | Treinamento intensivo em voos de teste; perfil operacional. |
Nicole Mann | 157 dias (Crew-5), ex-piloto F/A-18 | Eng. mecânica | Primeira nativa americana no espaço; liderança de tripulação. |
A decisão final costuma vir entre 18 e 12 meses antes do lançamento, de acordo com desempenho em simulações, disponibilidade médica e até compatibilidade de biótipos com os novos trajes desenvolvidos pela Axiom Space.
Dentro do guarda-roupa: os novos xEMU by Axiom
Se os fatos de Neil Armstrong pesavam 80 kg e tinham mobilidade limitada, os xEMU (Exploration Extravehicular Mobility Unit) prometem ser verdadeiros “robôs vestíveis”, conferindo giro de cintura, ajustes rápidos de torso e luvas aptas a operar em −200 °C. As juntas usam rolamentos tipo “rolos de patins”, e o material multilayer reflete 95 % da radiação ultravioleta. Para a primeira mulher, isto significa: traje sob medida em três dimensões, botas menores e uma infraestrutura de suporte-vida que considera fisiologia feminina (temperatura basal, taxas diferenciais de CO₂). A ergonomia é crítica para evitar o fiasco de 2019, quando um passeio espacial histórico foi adiado porque não havia tamanhos suficientes de torso médio no legado EMU.
A sinfonia de foguetes: SLS + Starship
SLS Block 1 — o último voo
O Space Launch System é, em essência, um Frankenstein de peças do ônibus espacial: tanques laranja, motores RS-25 reaproveitados, propulsores sólidos laterais. Em 2027, ele voará pela terceira (e última) vez na configuração Block 1 antes de migrar para o Block 1B. A capacidade de 95 toneladas a LEO é suficiente para levar a Orion e um ICPS (Interim Cryogenic Propulsion Stage). Contudo, o custo de cada lançamento ultrapassa 2 bilhões de dólares.
Starship HLS — o “arranha-céu” vertical
Enquanto isso, a SpaceX desenvolve uma variante da Starship sem flaps, focada no pouso vertical a jato suave. Serão necessários de 14 a 16 lançamentos-tanker para abastecer o HLS em órbita terrestre, antes de ele seguir para a NRHO.(en.wikipedia.org) O número exato varia conforme eficiência dos motores Raptor e tempo de acoplamento.
O fator-crítico: sincronizar janelas de lançamento, clima em Boca Chica, limitações da fauna local (tartarugas marinhas) e licenças ambientais com o cronograma da NASA.
Desafios que ainda mantêm a missão “no fio da navalha”
- Escudo térmico da Orion — A cápsula perdeu flocos de material carbonizado durante a reentrada do Artemis I. Engenheiros estão revisando a técnica de “pica-pau” (cortar sulcos para aliviar tensões) e realizando novos testes antes da soldagem final do Artemis II.(nasa.gov)
- Cone de spray de regolito — A aterrissagem no Polo Sul pode gerar jatos de poeira que corroem sensores e painéis. Simulações do Ames Research Center avaliam se um hover a 15 metros de altura com frenagem final a 2 m/s reduz o problema.
- Recarga de hidrogênio líquido — Tanques tipo common dome da Starship são sensíveis a fissuras por hidrogênio. Solução: revestimento SiC + monitoramento por ultrassom.
- Orçamento instável — A Câmara dos EUA apoia a Artemis, mas investigações políticas sobre liderança da agência podem redirecionar fundos para Marte.(washingtonpost.com)
- Remoção de “primeira mulher” — O marketing alterado da NASA levantou dúvidas sobre prioridades de diversidade. Contudo, fontes internas garantem que o requisito permanece no planejamento interno, apenas realocado para documentos técnicos.(phys.org)
Linha do tempo: do hoje ao grande salto
Data (estimada) | Marco | Status |
---|---|---|
Jun/2025 | Conclusão da solda do módulo de tripulação Orion III | ✅ Iniciado (Kennedy Space Center) (nasa.gov) |
Out/2025 | Teste do escudo térmico completo em túnel de plasma | ⚠️ Aguardando relatório Delta-CR |
Abr/2026 | Lançamento Artemis II (voo tripulado de 10 dias) | 🔄 Preparação final |
Ago-Set/2026 | Campanha de reabastecimento da Starship HLS | 🔄 Depende da licença FAA |
Mar/2027 | Revisão crítica de voo (CDR) integrada | 📊 |
Meados/2027 | Lançamento Artemis III | 🚀 Janela marcada |
Ciência de vanguarda: o que a equipe deve fazer na superfície
- Perfuração até 1 m de profundidade em crateras sombreadas para análise isotópica de gelo.
- Implantação de sismômetro de banda larga para mapear o núcleo lunar (sucessor do Apollo Passive Seismic Experiment).
- Experimento de radioastronomia de baixa frequência usando antenas dobráveis para estudar a “Idade das Trevas” do Universo sem interferência terrestre.
- Coleta de rochas do lado permanentemente iluminado para entender ciclos de temperatura de minerais voláteis.
- Teste de impressão 3D com solo lunar — protótipo Redwire para criar ladrilhos estruturais.
E depois? Gateway, Artemis IV e a avenida para Marte
Artemis IV (2028) levará o primeiro módulo habital da estação Gateway e inaugurará o SLS Block 1B; Artemis V será a expansão com braço-robô canadense; Artemis VI-VIII consolidarão a infraestrutura para um Base Camp lunar. A NASA aposta que, até 2032, campanhas de 42 dias na superfície se tornem rotina, com rotação de tripulações internacionais.
E o grande quadro? Cada laço tecnológico fechado — tanques criogênicos reutilizáveis, comunicações ópticas, propulsão solar-elétrica — converge para a meta de enviar humanos a Marte na década de 2040.
Conclusão: um passo para ela, um salto para todos nós
Se Artemis III cumprir o roteiro, o momento em que uma astronauta — talvez Christina Koch, talvez outra voz que ainda desconhecemos — pronunciar suas primeiras palavras no regolito gelado do Polo Sul será mais do que um marco de diversidade. Será a prova de que meio século de avanços computacionais, parcerias público-privadas e lições dolorosas (de Challenger a Columbia) convergiu para ampliar os horizontes da espécie humana.
Talvez, ao colocarmos a “meia lua feminina” na superfície lunar, percebamos que o espaço não é um clube exclusivo, mas um mar cósmico onde há lugar para todos. Como dizia Carl Sagan, “a exploração move nossa alma para frente”. Em 2027, essa alma vestirá um traje xEMU e atenderá pelo pronome “ela”. E nós — aqui, admirando — poderemos dizer: “fomos juntos, com ela, e seguimos adiante”.